04 maio, 2012

Pedra Polida

Gosto muito dos textos da Letícia Palmeira (Blog Afeto Literário). 
Me identifico com os questionamentos dela e, neste texto me achei aí em algum lugar...rs.




Na grande necessidade de quebrar regras, estacionei na vaga para deficientes. O estacionamento não estava lotado. Havia tantas vagas. Mas eu mirei certeiro o carro e me senti muito triunfante ao estacionar ali, na vaga proibida para mim. E fui às compras. Pessoas iam e vinham na esteira rolante do supermercado. Homens com cara de cerveja, mulheres com cara de Avon e crianças pedindo coisas. Crianças não mudam nunca. Incrível a quantidade de pensamentos que pode passar pela cabeça de alguém no minúsculo instante de estar na esteira. Eu divago, imagino, crio cenas inteiras e falo sozinha. Mas hoje foi um pouco diferente. Tentei disciplinar meus pensamentos. E foi um esforço imenso. Porque eu preciso me falar. O tempo todo. Mas eu também preciso calar e mudar algumas coisas. Então comecei a fazer uma pequena lista de coisinhas que preciso mudar. Pensei nas plantas. Preciso cortar definitivamente a buganvília. Ela havia morrido. E mandei que a cortassem. Mas certas plantas não morrem de verdade. Elas apenas fingem. E a buganvília voltou a crescer e de forma estranha. Não está bonita como antes. Está crescendo desorganizada. Então decidi que vou arrancar pela raiz. É preciso cortar pela raiz a buganvília. E vou passar a ser mais educada com o vizinho. Eu, de hoje em diante, darei bom dia e darei cumprimentos. Serei educada e muito polida. É o mínimo que posso fazer para manter a paz mundial. Sei que isso parece patético e pode ser que isso não mude a atitude de meu vizinho. Mas ao menos estarei fazendo a minha parte. Agora atravanquei. Essa coisa de parte me incomoda. Qual será a minha parte? Como irei saber até onde devo ir? Onde será o limite de minhas atitudes? Eu preciso entender isso porque terei que parar de fazer minha parte para que outros façam suas partes. Eu não posso continuar fazendo minha parte para sempre. É muito fácil perder a disciplina. Veja só como a minha foi pelos ares em apenas um segundo. Não quero mais pensar na minha parte. Outro item de minha lista: Preciso deixar de ser egoísta. E urgente. Perco tanta coisa sendo egoísta. Eu sempre fico naquela de querer tudo pra mim e sempre carrego muitas coisas comigo e quando termina a história, minhas mãos ficam vazias por excesso de peso. Preciso deixar de ser egoísta. Eu não ganho nada agindo dessa forma. Preciso entender isso de uma vez por todas. E preciso largar a mania de não querer amar ninguém. Estou sempre ferindo, sempre latindo, sempre rosnando. Sou uma grande placa de advertência no meio da estrada. Cuidado. Perigo. Por que tenho que fazer isso comigo? Que mal me fiz? E preciso entender que não é uma questão de amar pessoas. É uma questão de me permitir. Eu não me permito. Quem me conhece, sabe. Mas quem é que me conhece? Ninguém me conhece. Eu nunca me deixo ver. Sou um soldado camuflado no meio do mato. Ali, com medo do inimigo, escondido e munido até os dentes. Que guerra é a minha? E quando começou? Eu, que já estive nua diante de pessoas, não me permito ser quem eu sou. E isto é muito grave. É uma violação de mim. Maior crime não há. E a punição é claríssima: vivo na clausura de me passar por outra pessoa sempre. E isso nada tem a ver com dupla personalidade. É como viver a vida inteira querendo provar carne de carneiro e não provar por ter dito um dia que jamais comeria carne de carneiro por não gostar da carne. E sem nunca ter comido. É assim que acontece. Eu não me permito ser vista porque um dia eu disse que não permitiria e está feito. Mas do que estou falando? Será que perdi novamente a disciplina? Será que sai do limite? E quanto à lista de itens que preciso mudar em minha vida? E por que essa esteira não anda? Foi então que me dei conta de que a esteira estava desligada e não sei ao certo quanto tempo estive parada ali, pensando, enquanto o mundo continuava a insistir. Fiz minhas compras, não houve reclamação quanto à vaga para deficientes, voltei para casa, encontrei o vizinho na calçada e não o cumprimentei. Mudanças levam tempo. Agora eu sei.

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